Temporada 2023: Entusiasmo

A Sustenidos assumiu a gestão do Theatro Municipal em junho de 2021, em meio à pandemia de Covid-19, e, após apenas um mês, a equipe interna formulou a programação do segundo semestre, seguindo o tema “Liberdades Reinventadas”.

Em 2022, com o apoio de um Comitê Curatorial Multidisciplinar, foi lançada a programação com o tema Independência e Modernidade, em diálogo com as efemérides do centenário da Semana de Arte Moderna e o bicentenário da Independência do Brasil.

Ao olharmos em retrospecto para as programações de 2021 e 2022, foi perceptível a predominância de uma atmosfera densa, reflexo das muitas tensões vividas pelos indivíduos e coletivos sociais ao longo dos dois últimos anos, e que encontrou eco nos debates sobre identidade(s), fomentados pelo movimento Modernista. Os programas enfatizaram as muitas fendas e limitações nas relações sociais, a exclusão de grupos marginalizados e a falta de perspectiva de indivíduos diante dos problemas coletivos agravados por uma pandemia devastadora e um cenário político polarizado e instável.

Ao refletir sobre a programação de 2023, entendemos ser necessário apontar para caminhos de revitalização, reconstrução e, por que não, esperança, para além da sensação de esgotamento social que assolou o país. Por isso, optamos por nos apoiar em dois conceitos abrangentes que tomamos emprestados de culturas distintas.

O conceito grego de Enthousiasmós deu origem à palavra latina entusiasmo, mas pouco tem a ver com a concepção contemporânea mais centrada em aspectos psicológicos individuais. A palavra original é uma junção das palavras en(em), théos (deus) e ousía (essência), ou seja, o “deus dentro”. É importante lembrar que, para os gregos antigos, as muitas divindades se manifestavam em aspectos contraditórios da natureza e do mundo dos homens, em um arcabouço filosófico complexo que não podia ser traduzido em conceitos redutores de bem e mal. O Enthousiasmós era a força ao mesmo tempo vital e avassaladora que possuía as bacantes nos rituais consagrados a Dionísio, o deus estrangeiro do vinho e do teatro.

Adicionalmente, no texto Íon, de Platão, Sócrates explica ao rapsodo que o Enthousiasmós é a força motriz da própria arte poética: 

 

(…) O dom de falares com facilidade a respeito de Homero, conforme concluí há pouco, não é efeito de arte, porém resulta de uma força divina que te agita, semelhante à força da pedra que Eurípides denomina magnética e que é mais conhecida como pedra de Héracles. Porque essa pedra não somente tem o poder de atrair anéis de ferro, como comunica a todos eles a mesma propriedade, deixando-os capazes de atuar como a própria pedra e de atrair outros anéis, a ponto de, por vezes, formar-se uma cadeia longa de anéis e de pedaços de ferro, pendentes um dos outros; e todos tiram essa força da pedra.Do mesmo modo, as Musas deixam os homens inspirados, comunicando-se o Enthousiasmós destes a outras pessoas, que passam a formar cadeias de inspirados. Porque os verdadeiros poetas, os criadores das antigas epopeias, não compuseram seus belos poemas como técnicos, porém como inspirados e possuídos, o mesmo acontecendo aos bons poetas líricos. Iguais nesse particular aos coribantes, que só dançam quando estão fora do juízo, do mesmo modo os poetas líricos ficam fora de si próprios ao comporem seus poemas; quando saturados de harmonia e de ritmo, mostram-se tomados de furor igual ao das bacantes, que só no estado de embriaguez característica colhem dos rios leite e mel, deixando de fazê-lo quando recuperam o juízo.1 

 

Da mesma forma, na cultura Guarani, o termo Nhe’ẽ traz a ideia da palavra-alma ou, em outras traduções, espírito-nome, já que para os Guarani as palavras presentificam todo o arcabouço de sua cultura, seu espírito. Nhe’ẽ significa ao mesmo tempo “falar”, “vozes”, “alma”. Nhe’ẽ porã, as “belas palavras” ou o “bom espírito”. Segundo Sandra Benites, pesquisadora Guarani Nhandewa,

cada nhe’ẽ é a fala de momentos específicos, como aqueles da casa de reza durante a fala religiosa, quando se trata de ser espírito. É também a fala utilizada para explicar a importância da origem do nome e de seu significado. Cada nhe ’ẽ é um processo que possui vários ritos de passagem, sendo direcionado a cada etapa em que se encontra cada Guarani. É um caminho (tape) para a construção de cada passo do indivíduo no grupo, lembrando-o sempre do coletivo. É importante destacar de cada indivíduo o estado em que ele se encontra emocionalmente, por isso esses aywu ou nhe’ẽ porã – fala boa, ou boa fala – dependem do coletivo, do espaço dos elementos que formam o ser guarani. O ser guarani é construído por um conjunto de fatores. Para aproximar as expressões em Guarani e suas traduções em português, eu diria que, para nós Guarani, linguagem e o conceito de nhe’ẽ porã indicam a construção de um ser nhe’ẽ mbaraete, que significa uma pessoa alegre, tolerante, paciente, que sabe escutar com sentimento. Essa pessoa é considerada uma pessoa saudável, alegre, forte, que tem facilidade de superar qualquer desafio. É uma pessoa arandu (sábia).

Estes dois conceitos, Enthousiasmós e Nhe’ẽ porã (o último tendo sido objeto de uma exposição no Museu da Língua Portuguesa, o que apenas confirmou sua pertinência ao momento atual) foram apresentados ao Comitê Curatorial e às lideranças dos Corpos Artísticos como inspirações para a temporada de 2023. Para aprofundar o processo de reflexão, foram realizadas conversas da equipe com a filósofa Sandra Sproesser e a antropóloga e curadora Sandra Benites.

Ao se observar o todo da programação de 2023, portanto, será possível detectar conexões bastante evidentes com os temas propostos, mas também dissonâncias decorrentes da digestão e regurgitação desses eixos pelas equipes internas e pelo coletivo multidisciplinar de excepcionais curadores, a quem agradecemos imensamente. São eles: Ailton Krenak, líderança indígena, ambientalista, filósofo e escritor; Ana Teixeira, bailarina, professora e ex-diretora assistente do Balé da Cidade de São Paulo; Livio Tragtemberg, músico e compositor; Preto Zezé, músico, ativista cultural e presidente da Central Única das Favelas (Cufa); Priscilla Oliveira, maestra, e Sergio Casoy, professor e escritor especialista em ópera.

Cientes da importância de termos uma programação diversa e inclusiva, buscamos, ainda, equilibrar a programação com propostas que abarcam diferentes estilos e períodos artísticos, além de refletir sobre obras com potencial de atrair novos públicos. Certos também de cumprir o papel de fomentadores das artes, apostamos novamente em criações inéditas e artistas fora do circuito tradicional, de modo a fazer com que o público tenha o prazer de descobrir novas obras.

Desejamos que o ano de 2023 se mostre como um período de renovação nas artes e na vida, no qual seja possível acessar os mistérios que fazem brotar dos rios e da terra o vinho, o leite e o mel. Que a força magnética do Enthousiasmós, característica das bacantes e dos poetas, se manifeste em cada um de nós para que imaginemos um novo futuro, pleno de inspiração.

 

Alessandra Costa, Diretora Executiva da Sustenidos

Andrea Caruso Saturnino, Diretora Geral do Theatro Municipal de São Paulo

 

1 Íon – Menexeno. Tradução: Carlos Alberto Nunes. Belém: ed.

UFPA, 2020. (Coleção Diálogos de Platão)