Estamos em vias de completar um quarto de século e esse marco parece cravar nossa definitiva entrada no século XXI, com uma geração dos já nascidos nos anos 2000 adentrando no mercado de trabalho e na vida adulta. Essa tangibilidade secular, mais especificamente milenar, tende a nos tirar do transitório, do período de exceção, especialmente reforçado pelos anos da pandemia, e a nos trazer para a concretude do estar.
Nos últimos três anos, vimos trabalhando no Theatro no sentido de criar fluxos com mundos diferentes, abrir frestas para oxigenar nossos fazeres. No âmbito da difusão, o Programa Municipal Circula cresceu e se aprofundou. Conseguimos abranger a totalidade do contorno da área central da cidade, realizando apresentações dos corpos artísticos e de grupos locais. Aprofundamos as profícuas e desejáveis trocas. Em especial, realizamos uma residência artística com o Balé da Cidade de São Paulo (BCSP) e o Ballet Paraisópolis que resultou em uma bem-sucedida abertura de processo para o público. Trouxemos Alejandro Ahmed, artista oriundo da cena da dança independente, para assumir a direção artística do BCSP e, com isso, criamos novos fluxos e despertamos o interesse internacional por essa iniciativa, reposicionando o BCSP na cena de dança contemporânea.
Ampliamos significativamente a presença negra nas nossas produções, convidamos indígenas para encabeçar a criação da ópera O Guarani, tendo tido o reconhecimento do público como a melhor montagem operística do ano, no levantamento da revista Concerto, e da associação espanhola Ópera XXI, que a escolheu como a melhor produção operística latino-americana de 2023. Aumentamos enormemente o número de obras de compositoras mulheres apresentadas nas temporadas, apresentando ao público um repertório inédito tanto de obras dos séculos passados quanto de contemporâneas.
Instauramos uma política de acervo que tem nos possibilitado revisitar com mais critério os repertórios do passado e nos orientado no bom uso e organização do presente, nos engajando de forma responsável com as gerações futuras. Reativamos a Central Técnica de Produções, valorizando o fazer dos bastidores, promovendo um desenvolvimento artístico mais sustentável e comprometido com o rigor e as inovações técnicas, além de termos instaurado programas de formação de novos técnicos.
No ano de 2025, pretendemos consolidar essas mudanças para que se tornem perenes e façam com que a cara da programação do Theatro no século XXI seja naturalmente diversa, multifacetada, inventiva, colorida e plural.
Em colaboração com as integrantes do Comitê Curatorial convidado, Elodie Bouny e Gabriella Di Laccio, juntamente com a equipe de programação e os diretores dos corpos artísticos, destacamos questões contemporâneas cruciais a serem abordadas na programação de 2025: como conviver em um contexto de tantos extremismos; como mundos diversos podem coabitar e as batalhas por direitos dos marginalizados. Inspirados pelas reflexões do filósofo, poeta e ensaísta martinicano Édouard Glissant, identificamos dois eixos temáticos centrais abordados em seu tratado O Grito do Mundo, com o intuito de inspirar nossas propostas.
Referimo-nos, primeiramente, à ideia de ici-là (aqui-lá), cara ao pensamento de Glissant, que propõe representar a simultaneidade ou coexistência de diferentes lugares, diferentes contextos, temporalidades e realidades, na sua multiplicidade de perspectivas, identidades e experiências que constituem todos nós, bem como o mundo ao qual todos pertencemos, como seres interligados e inter-relacionados no meio de uma pluralidade de histórias, geografias e culturas. Este pensamento propõe uma ruptura com a leitura binária e dicotômica do tempo e do espaço, em favor de uma abordagem aberta, inclusiva e plural.
Em segundo lugar, evocamos suas reflexões sobre a proposta de unicidade. Ao questionar a legitimidade dos nossos espaços isolados, ao mostrar as perversões da filiação, possibilitamos que esses nossos lugares se abram às dimensões do mundo. Sem medo da disponibilidade, da desproporção, de uma forma de irrupção no espaço. Precisamos, a seu ver, admitir a prática do desvio, que não é fuga nem renúncia. Ele fala, de forma mais geral, sobre as máquinas identitárias das quais tantas vezes somos vítimas, como, por exemplo, o direito de sangue, a pureza da raça, a completude, a integridade, o dogma.
Glissant memora a ideia de paisagem, que emprestamos à essa reflexão pela sua pertinente coerência com o nosso universo – do mundo impregnado de paisagens, do casamento de paisagens, do tempo como paisagem. Ele nos convida a uma concepção de mundo que é possibilitada pelo imaginário do mundo, pelas poéticas entrelaçadas que nos permitem adivinhar como nossos lugares se relacionam com os outros, como, sem nos mover, nos aventuramos em outros lugares, e como somos levados adiante nesse movimento inerte. Nesse sentido, como produtores de paisagens sonoras, paisagens imagéticas, paisagens imaginárias, paisagens coletivas, paisagens virtuais, buscamos construir uma programação que compartilhe e faça reverberar no público imagens coerentes com uma cadência multicolorida, com a multiplicidade, enfim, com a diversidade-mundo.
Entre as efemérides do ano, voltamo-nos a um marco significativo – o 80º aniversário do término da Segunda Guerra Mundial. Honramos as cicatrizes desse passado bélico, enquanto enfrentamos os contornos incertos do presente. E, face aos desafios complexos, em um contexto de mudança de paradigmas relacionado ao uso das tecnologias e meios de comunicação, refletimos sobre nosso microcosmos, nossa responsabilidade individual, pensando sobre como melhor aproveitar nossas assimetrias complementares, elaborando modos de pensar e modos de articular que não requeiram resignação.
Por último, em um ano em que teremos uma temporada oficial do Brasil na França e da França no Brasil, evocarmos Glissant nos possibilita também mergulhar na sua ideia de valorização e preservação das diferenças e singularidades culturais dentro de um contexto de interações e hibridizações constantes. Em uma abordagem radicalmente aberta e inclusiva, em que diferenças e pluralidade são celebradas em lugar de serem subjugadas, somos capazes de vislumbrar um mundo onde múltiplas perspectivas e tradições coexistem e se entrelaçam em uma constante construção e recriação de si mesmas. Não se trata de um processo de miscigenação cultural, mas, sim, uma forma de resistência e afirmação da diversidade cultural, para gerar novas formas de expressão e compreensão, fundamentais à construção de sociedades mais inclusivas e plurais.
A temporada de 2025 apresenta-se como um convite à introspeção e à audácia – um chamado para que sigamos com o compromisso de ressoar com as trocas urgentes e necessárias na sociedade. Para que o Theatro Municipal se considere não apenas como consumador de tradição, mas como agente de transformação, reexaminando e desafiando os padrões arraigados que definem a cultura e a prática artística.
Convidamos a todas e todos a embarcarem conosco nessa bela aventura e a participarem da programação como um todo, constituída tanto pelos espetáculos contidos nesse caderno, que é a série disponível para assinaturas, quanto por muitos outros eventos e acontecimentos, que podem ser acompanhados pelo nosso site e nossas redes.
Andrea Caruso Saturnino
Superintendente geral do Complexo Theatro Municipal
Alessandra Costa
Diretora Executiva da Sustenidos